Passado 8 semanas, em que vos demos a conhecer pessoas incríveis, chegamos hoje à última entrevista! Mas não se preocupem, porque fechamos com chave de ouro com o Afonso Abecasis Gomes. Conheci o Afonso na Geórgia, num intercâmbio europeu (não há como não se darem bem com ele).
Ademais, o Afonso é especialista em Segurança Internacional, um tema que me fascina. Sabendo que não se dá o devido destaque no que toca à relação entre alterações climáticas e guerra, decidi também entrevistá-lo para falar sobre esse assunto.
Por fim, e não menos importante, questionei-o sobre o que se está a passar em Moçambique. Fiquem a conhecer o Afonso!
Fala-nos um bocadinho sobre ti para os nossos leitores te conhecerem.
Tenho 22 anos, cresci e sempre vivi em Lisboa. Estudei Ciência Política e Relações Internacionais na Nova FCSH. Durante aqueles três anos a minha vida e a visão que tenho dela e do mundo que me rodeia mudou profundamente. Comecei a questionar mais as coisas sobre as quais achava, ingenuamente, ter uma enorme certeza e sobretudo conheci novas pessoas, novas histórias e novas ideias que ainda hoje permanecem comigo. A par disto foram crescendo as minhas maiores paixões – segurança internacional, estudos para a paz e desenvolvimento, estando a tirar neste momento duas pós-graduações em estudos estratégicos e de segurança e em economia social e solidária. Fora dos estudos o que mais gosto de fazer é ver, escrever e falar sobre filmes [risos]. Também sempre gostei de artes e de desenhar, em miúdo tinha o sonho de seguir animação. Gosto de pensar que me dou bem com toda a gente, em Portugal e pelo mundo fora e adoro vaguear e falar, partilhar sobre aquelas ideias mais escondidas ou as histórias menos contadas que sempre me fascinaram. No meio disto tudo tenho tentado aprender a andar de skate, com alguma dificuldade!
Quais os valores que te movem?
A curiosidade, acima de tudo. Viver uma vida curiosa para mim é viver uma vida plena, a de querer saber e ouvir o que este mundo tem para mostrar e contar – em cada canto e em cada um de nós. Outros valores marcantes são o humor e a paz, as duas coisas mais valiosas nas melhores e piores alturas: a de rir e pensar num futuro pacífico e mais calmo que o presente.
És um interessado em segurança internacional. Quando surgiu este gosto em ti?
Quando entrei para o meu curso, a área diplomática era a que mais me interessava e isso mudou completamente com o meu Erasmus, quando tive a oportunidade de estudar em Praga. Lá, conheci professores únicos e tive cadeiras que debruçavam mais a fundo sobre a segurança, conflitos étnicos e Direitos Humanos. O bichinho cresceu sem parar a partir daí! Apercebi-me com mais detalhe da complexidade envolvida quando nos propomos a perceber o porquê de um conflito – é toda uma jornada e é preciso olhar para a História, a geografia, a cultura, a religião, as etnias, a psicologia dos atores, a economia… de cada zona! Está tudo interligado e é um reflexo da maneira como tento olhar para as coisas.
Qual achas que é a relação entre alterações climáticas e guerras? Será que existe uma ligação direta entre elas?
A partir de 2050 estima-se que o calor extremo e as secas tornem certas zonas do Médio Oriente inabitáveis, com milhões de pessoas a deslocarem-se à procura dum abrigo. Na África Subsariana, o desaparecimento do lago Chade tem aumentado os recrutamentos para as milícias do Boko Haram. Já no Sul da Ásia, o controlo pelas nascentes dos rios e dos recursos hídricos, cada vez mais escassos, esteve na origem de recentes conflitos entre o Paquistão e a Índia, e entre esta e a China. Estes são apenas alguns dos exemplos de como as alterações climáticas podem criar mais instabilidade e conflitos – mais do que assustadoras previsões, essa relação já está a acontecer neste preciso momento. A especificidade dessa relação é que não tem tido um vasto consenso académico, sobretudo na existência ou não duma causalidade direta. Mas, na minha opinião, basta observar que os países que têm sido mais afetados por padrões climáticos severos – sejam secas ou cheias – são também os países mais suscetíveis ao conflito armado ou bastante fragilizados, como a Somália, Sudão, Burundi ou o Iémen. Neste sentido, os fatores climáticos e as suas mudanças podem perfeitamente intensificar e prolongar conflitos já existentes ou reacender clivagens e tensões sociais mais “congeladas”. Alguns estudos mais recentes até apontam para uma intensa relação entre alterações climáticas, conflitos e migrações: numa amostra de imigrantes e refugiados que chegaram à Europa durante o pico da crise migratória de 2015, foram-lhes perguntadas as razões pelo qual abandonaram o seu país: a mudança climática era uma das causas de raiz. O melhor exemplo que temos é a Síria – a intensa seca entre 2007 e 2010, a maior já alguma vez registada naquele Estado, provocou vastas falhas nas colheitas e uma migração em massa da população rural para os centros urbanos, incluindo Damasco. Esta pressão demográfica, juntamente com falhas económicas e instabilidades políticas e sectárias culminou na guerra civil que todos conhecemos. O veredito? Aquela intensa seca foi uma variação climática causada pela interferência humana.
Desde 2017, Cabo Delgado, em Moçambique, tem vindo a sofrer ataques terroristas. Estes fazem-se sentir também numa zona onde existe um grande projeto de gás da Total. Na tua opinião, qual a ligação entre estes dois aspetos?
Moçambique é um exemplo perfeito de algo que, infelizmente, é característico a grande parte do continente africano – a maldição dos recursos naturais ou resource curse.
Nas últimas décadas, houve um enorme aumento do investimento estrangeiro no desenvolvimento de energia e gás no país. Depósitos de petróleo, campos de gás natural liquefeito e pedras preciosas, projetados num valor de milhares de milhões de dólares, culminaram numa mudança do clima político e social do país, sobretudo em Cabo Delgado – a região mais abundante em recursos e, no entanto, a mais negligenciada, com taxas de desemprego e pobreza superiores à média nacional. Esta região também era marcada pelo setor mineiro, que empregava sobretudo a população mais jovem em postos artesanais. Com a chegada das grandes multinacionais como a francesa Total ou a Galp, o que se viu foi uma tomada de posse da indústria extrativa por interesses privados e estrangeiros, que tiveram pouco ou nada em conta face a uma redistribuição social naquela província. O desemprego jovem disparou e deixou uma vasta camada da população vulnerável a qualquer tipo de insurreição, num Norte cada vez mais visto como um “território desgovernado”. Além disso, Cabo Delgado é também uma região marcada pelo tráfico humano, de drogas e animais selvagens que se estende até ao Corno de África, tendo também uma maior influência do radicalismo islâmico na região dos Grandes Lagos.
Se a isto juntares toda a estrutura de Moçambique enquanto Estado frágil, marcado pela corrupção, ganância e clientelismo duma elite que concentra em si toda a riqueza nacional – num fenómeno chamado de neopatrimonialismo – com um sistema judicial profundamente debilitado, um setor de segurança paramilitar acusado de abusos de poder, fraudes eleitorais e falta de legitimidade política e abusos de Direitos Humanos, tens a receita para a catástrofe.
A onda de terrorismo e insurgência que temos visto – de grupos que se autoproclamam de Al-Shabab e com possíveis ligações ao Estado Islâmico na África Central – é a prova de como todo este descontentamento e marginalização económica e histórica tornam-se fáceis de explorar. O número de recrutamentos tem vindo a aumentar, seja por raptos de crianças e jovens, seja pela lógica do “junta-te a eles se não os consegues vencer”, entre outros fatores psicossociais.
Não acredito que haja uma única teoria que consiga explicar a origem desta violência e radicalização – é preciso olhar para múltiplos fatores, causas e razões. Mas sem dúvida que a abundância de recursos naturais, quando mal redistribuídos e “retirados” à população, criam clivagens difíceis de resolver.
Já que falamos em recursos naturais, qual a sua importância para manter a paz no mundo?
Desde 1990, entre 18 a 20 conflitos foram alimentados pela exploração dos recursos naturais. Nos últimos 60 anos, pelo menos metade de todos os conflitos intraestatais tiveram uma ligação com recursos naturais. Desde as guerras civis na Libéria e na República Democrática do Congo por causa de petróleo, ouro e minerais, passando pelo Darfur ou a região do Grande Médio Oriente por causa da escassez de água e da posse de terras férteis.
A forma como os recursos naturais e o ambiente são governados tem uma influência determinante na paz e na segurança, podendo haver uma recaída dum conflito se não houver uma gestão adequada dos mesmos. Assim, existe uma noção fundamental do ambiente e dos recursos como um caminho para a construção da paz: através do desenvolvimento e recuperação económica e da respetiva criação de emprego ou ainda da cooperação entre Estados e atores na gestão partilhada de recursos vitais que proporcionam plataformas de diálogo e peacebuilding. E, no entanto, poucas negociações pós-conflito abordam estas temáticas.
É preciso integrar os recursos naturais nos processos de peacemaking e peacekeeping – na mediação e prevenção de conflitos e sobretudo relacionar com a partilha de riqueza: terra, água, minerais, entre outros. Isto é um fator decisivo na sobrevivência dum acordo de paz. Aqui entra a importância da transparência, da informação, da responsabilidade e da sustentabilidade ambiental. Com a transição energética global e a difusão de energia renováveis, há um potencial enorme na capacitação das comunidades locais no acesso a fontes de energia que não sejam combustíveis fósseis. Vai ser interessante ver a relação disto com a recuperação de áreas afetadas por conflitos.
Escreveste sobre Ecocídio para o jornal crónico e que o “regime jurídico ambiental é fragmentado, pouco claro e reativo”. Porque achas que não é dada tanta atenção a crimes ambientais como outros delitos?
Desde a criação da agência ambiental da ONU – PNUMA – em 1972, mais de 1000 tratados e regulamentos ambientais foram desenvolvidos. No entanto, este rápido crescimento jurídico não se traduziu em verdadeiras mudanças sistémicas. A Convenção das Alterações Climáticas de 1992, Quioto, os Acordos de Paris ou o Green Deal Europeu são os marcos duma consciência ambiental que se veio fortalecendo, mas os entraves são muitos ainda.
A falta de coordenação entre agências governamentais, fracas capacidades institucionais, falta de acesso a informação e dados, corrupção, falta de envolvimento e participação cívica (seja por falta de informação seja por repressão estatal) – todos eles contribuem para a débil aplicação de leis ambientais. Alguns ministérios que tratam destes assuntos estão muitas vezes subfinanciados em comparação com outros que envolvam o setor económico ou energético.
A meu ver, de todos os pontos, o principal responsável é o próprio setor político. É preciso uma profunda mudança da vontade política, separada das influências das empresas dependentes de combustíveis fósseis. Estes lobbies, o fenómeno das portas giratórias entre o público e o privado, o clientelismo e a corrupção são a grande barreira que temos num mundo que evita criminalizar danos ambientais. O resultado é um certo “deixa andar” de pequenas mudanças por um lado, ou puro negacionismo das alterações climáticas noutro espectro mais extremo, que temos visto com Trump, Bolsonaro e outros populistas. Tudo numa lógica bastante presente no Ocidente de “isto do aquecimento global não acontece por cá” – se não veem os efeitos na pele, então não existe ou não é preocupante. Até ao dia.
Qual um desejo teu para o futuro?
Mais consciência coletiva – de que a vida não é só o nosso umbigo e as nossas preocupações, por mais válidas que elas sejam. Acredito que há um vínculo, um propósito que nos liga a todos e as sucessivas crises que temos visto podem ser um alerta para um futuro mais presente, unido e coletivo.
Sugestões do Afonso

Livro: “Utopia para Realistas”, de Rutger Bregman
Filme – “La Haine”, de Mathieu Kassovitz
Podcast: “War and Peace”, International Crisis Group