Como feminista que sou, há muito que queria trazer o tema ecofeminismo aqui à “tasca”. Procurei, procurei e procurei, mas não encontrava ninguém que me convencesse a trazê-lo aqui. Até que uma amiga me falou da Mariana, e desde o primeiro momento não duvidei que ela era a pessoa indicada para falar sobre ecofeminismo. Fiquem a conhecer esta feminista e ativista ambiental fabulosa!
Fala-nos um bocadinho sobre ti para os nossos leitores te conhecerem.
Sou a Mariana, tenho 19 anos e sou estudante de Direito na Faculdade de Direito de Lisboa. Sou natural de Matosinhos e aos 18, parti para a capital, a 350 km da minha cidade, para seguir um dos meus maiores sonhos – estudar Direito. Mal eu sabia que não iria encontrar a minha realização pessoal dentro da FDL. Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente, 6.ª extinção em massa, opressão, discriminação, racismo, exploração, CO2lonialismo, homofobia, machismo, trabalhadores sem direitos, fome e injustiça. Não podia mais viver alienada, distraída à conta do meu umbigo e dos pequenos privilégios que ainda tinha. Hoje, sou ativista, a tempo inteiro, por justiça climática e justiça social, na Greve Climática Estudantil e na Climáximo.
Quais os valores que te movem?
Perguntava José Mário Branco: “e tu aí, quais são os teus valores?”. Ao que responde: “Os meus valores estão na Bolsa de Valores”. Os meus valores assentam na justiça enquanto um valor abstrato assente num véu de ignorância e que pressupõe a criação e efetivação de direitos, oportunidades e distribuição de riquezas e recursos iguais. Daqui extrai-se a igualdade do ser humano perante a lei e o outro. Pela negativa, este valor move-me no sentido de dizer “não” a uma economia de exclusão e desigualdades que idoliza o dinheiro. A uma economia que explora infinitamente recursos finitos e que sobrepõe o crescimento económico ad eternum ao bem-estar das pessoas. Move-me o cuidado mútuo das pessoas e do planeta. A restante moralidade será depois construída!
Como começou a tua luta/ativismo contra as alterações climáticas?
Eu juntei-me ao movimento por justiça climática em setembro de 2019 – primeiro à Greve Climática Estudantil, seguida da Climáximo -, coincidindo com a minha vinda para Lisboa. Antes desta data, posso dizer que sempre fui uma pessoa desassossegada, crítica e sedenta por informação que me permitisse sair da bolha de privilégio onde me encontrava. Todavia, foi em Lisboa, entre ruas e ruelas, manifestações e vigílias, entre pessoas sem casa e pessoas com perspetivas diversas das que tomo, que percebi a gravidade da crise climática e a sua intersecionalidade com todas as restantes crises e desigualdades. Senti-me impotente, em pânico, assoberbada com tanta informação e consciência da realidade. Depois do susto, nasceu a atitude que queria ver e ser no mundo: ativa. O ativismo é para mim um modo de estar na vida. É acordar todos os dias e pensar: “A nossa casa está a arder. Não há tempo a perder para apagar o fogo. Tenho de dar o máximo.” Na verdade, é viver em estado de pânico a toda a hora. Mas não seria de esperar uma outra coisa.
A sustentabilidade e a igualdade de género estão interligadas, e já falaremos mais sobre isso. Eu sou uma feminista assumida, mas muitas pessoas tem problemas em dizerem que são "feministas" (rótulos), porque achas que acontece?
De um modo geral, creio que as pessoas têm receio de confrontar o status quo e, no limite, de se confrontarem-se a si próprias. Especificamente, acredito que, em primeiro, há falta de informação e politização dos movimentos sociais. Confunde-se feminismo com femismo e até com machismo! Não há discussão da teoria feminista e das suas vertentes. Não de destrinça as visões do feminismo liberal do radical do socialista ou do ecofeminismo. Por outro lado, o feminismo “mainstream” simplifica-se na luta por igualdade de oportunidades, deixando intacta a sociedade capitalista. Na primeira parte do séc. XX, a Primeira Onda do movimento feminista é acometida por uma ruptura que conduz à desmobilização do movimento em vários países. Ressurge, então, a Segunda Onda e com ela o feminismo radical. O feminismo radical foi teoricamente o mais inovador, rejeitando definições tradicionais de políticas e teorias, enquanto condenava todas as teorias anteriores como patriarcais. O contraponto de ideias, a diversidade e a intensidade da atuação do movimento feminista, ao longo da sua história, ilustra a complexidade que envolve a compreensão e definição do conceito de feminismo, bem como, das diversas correntes feministas. Assim, no cenário atual, ora por pensarem que serão prejudicadas nas suas carreiras profissionais, ora por terem medo da sanção social, as pessoas receiam em afirmar-se como feministas – que nada mais é do que afirmar-se como defensoras da igualdade entre pessoas e a abolição de todas as formas de opressão e exploração por parte do homem. A mudança deste cenário passará pela educação, pela consciencialização e pela revolução do sistema patriarcal capitalista per si.

Voltando agora à área ambiental, como as alterações climáticas contribuem para as desigualdades?
Desde o início da pandemia do covid-19, milhares de pessoas foram deixadas à beira do desemprego, da precariedade e da pobreza. A par disto, a crise climática não desacelerou e o relógio continuou a contar. Face a um conjunto diversos de crises conjunturais e interseccionais, os direitos básicos têm de ser garantidos a todas as pessoas, de forma incondicional. No entanto, estes direitos estão ameaçados. Cortar globalmente 50% das emissões de gases com efeito de estufa até 2030 será a maior transformação que a Humanidade já empreendeu, e é exatamente aquilo que a Ciência nos diz que tem de acontecer. Não o fazer é fechar os olhos ao agravamento da injustiça social climática que atinge sobretudo quem mais obstáculos enfrenta – mulheres, pessoas portadoras de deficiência, pessoas em condições socioeconómicas mais precárias, pessoas racializadas, pessoas discriminadas e excluídas devido à sexualidade, género, entre outros. Quem menos contribui para as alterações climáticas é quem mais sofre com as suas consequências e as instituições deste sistema falham miseravelmente na defesa de quem mais precisa, de forma consciente e consistente. Falando de desigualdade entre homens e mulheres e a sua relação com a crise climática, a ONU tem alertado para o facto de as mulheres estarem cada vez mais vulneráveis ao impacto dos desastres ecológicos — em 2012, as inundações nas ilhas Fiji levaram a que muitas meninas saíssem da escola para ajudar a família e, em vários países, as mulheres ainda são as principais responsáveis pela produção agrícola e pela recolha de água para a família. Este é um dos exemplos entre milhares que serão exponenciados nos próximos anos, se nada fizermos.
O ecofeminismo conecta sustentabilidade e feminismo, explica-nos um pouco sobre como estão conectadas e a sua importância.
O ecofeminismo é uma corrente política em que se assenta que o sistema capitalista é mantido pela subjugação das mulheres, dos povos colonizados e das suas terras, além da própria natureza. Daqui retira-se que a subjugação das mulheres pelo homens e a dominação e destruição da natureza pelo capitalismo são duas faces da mesma moeda, perpetuando o mesmo desprezo pela vida e os seus ciclos. No demais, refletiu-se sobre a civilização moderna e a sua fundação numa dicotomia estrutural: assim, a natureza está subordinada aos seres humanos, as mulheres aos homens, o consumo à produção e o local ao global. Entre estas dinâmicas de poder, hierarquia e opressão, as mulheres e o planeta são apenas mercadoria e instrumento de troca. Perante a emergência da crise climática, da exponenciação de todas as crises sociais e económicas, o ecofeminismo surge como uma luz ao fundo do túnel e radica-se na luta do futuro. O ecofeminismo divide-se em duas correntes principais: essencialista e construtivista. Da minha parte, eu defendo as ideias do ecofeminismo construtivista, não descurando a premissa de que é um movimento e teoria em evolução e, portanto, tenho ainda muito a aprender. O ecofeminismo construtivista trata-se de uma corrente desenvolvida a partir da década de 1990. Considera que não há uma essência feminina que liga as mulheres à Natureza. Ao invés, foram as estruturas sociais e económicas que determinaram a divisão sexual do trabalho e aproximaram as mulheres da Natureza, desenvolvendo nas mulheres relações afectivas e sentimentos que foram reprimidos nos homens. Anticapitalista, antipatriarcal, em defesa do respeito pelos ciclos naturais e de vida e pela justiça social e de género, o ecofeminismo tem de ser parte integral do programa político do movimento pela justiça climática.
Qual um desejo teu para o futuro?
Apesar de ter a tónica no pânico decorrente do mesmo, o meu desejo passa pela a ocorrência de uma revolução do sistema económico capitalista a um ponto tal que permita combater a crise climática e abolir todas as formas de opressão e exploração do ser humano pelo ser humano e do ser humano sobre o planeta. Para isto acontecer, precisamos de reconhecer que a nossa sociedade está doente. As pessoas e o planeta estão doentes. A cura passará por uma economia que coloque os cuidados pela vida, pelas pessoas e pelo ambiente no centro das decisões políticas. Após reconhecermos, precisamos de unir forças e vozes e tomar o lugar à mesa. Precisamos de sair da bolha de alienação e conformismo e encarar a realidade de que a nossa está a arder (ponto). Só ganhamos pela força. Um grande escritor e ativista disse uma vez: “o poder não concede nada sem pedir algo em troca”. Não vamos convencer quem está no poder pela via da razão. Só vamos ganhar se tivermos connosco a força da mobilização social. Nesta Primavera, desafio todas a criarmos a nossa própria História. Sairmos às ruas em ações de desobediência em massa, contra um sistema tóxico que nos vai continuar a queimar se nada fizermos. No dia 19 de Abril, dia de aniversário do Partido Socialista, às 19h00, a Climáximo esteve no Largo do Rato, à frente da sede do partido, a fim de reivindicar menos aviação e uma transição justa inerente ao aumento da ferrovia. Esta ação teve como objetivo a convocação de uma ação de desobediência civil em massa no Aeroporto de Lisboa, dia 22 de maio. Se a lei não é justa, o papel de quem é justa é desobedecer. A nossa casa está a arder. Nós somos aquelas de quem estávamos à espera. E tu, vais ficar a ver? Sabe mais em: em-chamas.pt
Sugestões da Mariana

Livro: “Ecofeminismo”, de Maria Mies e Vandana Shiva
Filme:“Persepolis”
Podcast: Revolutions, de Mike Duncan